Demolidor e a importância da liberdade autoral.
Os holofotes estão sob a Cozinha do inferno, com o estrondoso sucesso da série do Demolidor na Netflix, e á série dos Defensores que vem ai em 2017, é fácil ser fã do herói hoje em dia, mas quem acompanha as histórias em quadrinhos de longa data sempre teve uma ótima experiência, mesmo considerado herói de segundo escalão, a beira do cancelamento diversas vezes, o herói sempre proporcionou ao seu escritor uma imensa liberdade autoral, sempre fazendo oque bem quis em suas histórias, oque quase sempre rendeu grandes clássicos para o personagem, maior detentor de prêmios Eisner, o Demolidor sempre foi uma mão cheia para quem tomava conta de seu quadrinho.
Desde á era de ouro do herói, nas mãos do mestre Frank Miller, que enriqueceu a mitologia do personagem adicionando elementos orientais, treinamento ninja, criação de personagens como Stick e Elektra, eleveu a importância de vilões como o Mercenário e Rei do Crime, o escritor estabeleceu o terreno para grandes autores e histórias depois, o cineasta Kevin Smith com o Demônio da guarda, a arrebatadora e vencedora de Eisner, fase de Brian Michael Bendis e a fase descontraída do também vencedor de prêmio Eisner, Mark Waid.
Frank Miller ressuscitou o personagem, em eminente cancelamento, ao jovem Frank Miller foi dado a responsabilidade de uma última tentativa, sem muitas pretensões, a editora deu o crédito para um promissor desenhista na época, de não apensa ilustrar e sim também escrever suas idéias para o demônio destemido, e a editora acertou em cheio, mesmo que sem querer. A revista além de sobreviver ao cancelamento, se tornou a maior venda da editora e mudou sua periodicidade de bimestral para mensal! Tamanho o sucesso que trouxe ao herói, que caia nas graças dos leitores da editora. A grande inspiração da série da Netflix é claramente a fase de Miller, com algumas poucas referências á fase de Bendis, a de Miller é adaptada para a televisão, o uniforme preto é o mesmo utilizado na séire "O homem sem medo", na origem escrita por Miller e desenhada pelo John Romita Jr, Stick e o Casto, também criados nesta fase são citados e a guerra sempre mencionado por Stick começou na segunda temporada. Miller criou uma das melhores personagens femininas da indústria dos quadrinhos, a Elektra virou febre entre os fãs, a fria e sexy assassina, ex namorada e eterna paixão do protagonista do quadrinho era motivo para muitos fãs acompanharem. E o autor mata a personagem. Em um das cenas mais icônicas dos quadrinhos, Frank Miller traz uma profundidade para um vilão, que estava caindo no senso comum em suas histórias e surpreende a todos, uma ideia ousada e genial, que rende frutos até hoje. Vamos contextualizar, a HQ foi publicada em 1980, cena de tamanha violência não era facilmente concebida, muito menos bem recebida por fãs e editoriais, mas de alguma forma o autor convenceu seus chefes e nos trouxe esta obra prima.
A grande fase uma hora que tinha acabar e Frank Miller deixa a hq após anos de sucesso, projetando vôos mais altos como o já comentado aqui, Batman o cavaleiro das trevas. Voltando em 1986, o autor presenteia a indústria dos quadrinhos com A queda de Murdock (Born again nos USA). A história mais uma vez se encontra com ideologia além de seu tempo, abordando temas como prostituição, pornografia, vício em drogas e religião, e pasmem, o personagem que sofre com tudo isso é nada mais, nada menos que a ex namorada e secretária de Matt Murdock, Karen Page! Tamanha ousadia do escritor de desconstruir um personagem que surgiu junto com o Demolidor, em sua primeira edição, um personagem do cânone do herói. E não para por ai, a personagem vende a identidade secreta de seu amado por um pico de heroína, informação que chega nas mãos do seu grande vilão, o Rei do Crime, que destrói a vida do Demolidor em seu estado mais frágil, o de Matt Murdock, a vida social, profissional e amorosa de Matt Murdock é virada do avesso em uma das maiores, se não a maior, derrota que um super-herói já sofreu, e a mensagem que se tem após a leitura da saga é a mais bonita, toda a trama é conduzida de forma com que os leitores sintam desejo de vingança, que Karen seja morta ou presa, que Matt vá atrás do Rei e o espanque, mas isso não acontece, a história acaba com uma das maiores mensagens bíblicas, a do perdão, Matt perdoa sua ex namorada Karen Page, e a salva de todos seus problemas. O retorno triunfal de um escritor, tido como pai do herói, que volta para escrever oque é tido até hoje como a maior história de todos os tempos do Demolidor.
Após esta breve passagem de grande sucesso de Frank Miller, o querido Demolidor passou novamente por maus bocados, com ressalva para a fase de Noccenti e o jovem Romita Jr, o Demônio da cozinha do inferno não teve histórias memoráveis por um tempo, até que nos anos 2000, a HQ, junto com a editora, passou por uma reformulação, criando o selo Marvel Knighrots, apostando em jovens talentos, como o promissor cineasta Kevin Smith, e em Joe Quesada, que cometeram apenas um erro, prometeram uma nova "Queda de Murdock", e não entregaram tamanha obra de arte, mas uma grande trama envolvendo temas como religião, a AIDS e profundos problemas psicológicos, trazendo um vilão de segunda, de uma galeria de vilões de outro super-herói, como o Mistério como vilão principal e Karen Page novamente para "infernizar" a vida de seu amor, Karen volta com AIDS, deixando Matt preocupado com sua própria saúde e de Karen Page. Drama que não dura muito, pois o vilão Mercenário volta apenas para matar outro grande amor do herói. A história é boa, mas não entrega oque promete, mas é importante contextualizar novamente, e nos lembrar que na época, assuntos como religião, que sempre são sensíveis de se abordar, e a emergente doença do vírus HIV, não eram assuntos discutidos em um quadrinho, são assuntos que chocam, tabus que na época eram difíceis de serem quebrados, assim mais uma vez a HQ do Demolidor serve de vanguarda para assuntos delicados.
Após a passagem de Kevin Smith, passagem que merece grande destaque e na minha opinião, a cereja do bolo, é a passagem de Brian Michael Bendis e do gênio Alex Maleev, a passagem que revelou ao mundo a identidade de Matt Murdock como Demolidor, a passagem em que todos os atos de violência que o advogado herói sofreu iriam desfragmentar sua mente, passagem em que se casa, se declara o rei da cozinha do inferno, espanca veemente seu arqui-rival mercenário, e que apesar de todos os fatos grandiosos citados, seu trunfo está nos diálogos, diálogos que te mergulham na história como se fosse uma série de televisão, ou um filme envolvente, diálogos que somente Brian Michael Bendis sabe escrever, combinando perfeitamente com a arte de Maleev, sua arte suja e realista que retrata a cozinha do inferno e seus personagens de uma forma única e belíssima.
Recentemente no Brasil, foi publicado na íntegra, no interessantíssimo formato de encadernados trimestrais, a fase do premiado Mark Waid á frente do Demolidor. Mark foi ousado, não em matar algum personagem importante, ou em promover alguma mudança drástica na vida do herói, mas sim no humor, Mark vai contra á maré que as recentes fases do Demolidor estava sendo levada e para de beber da fonte de Frank Miller, ressuscitando o humor do personagem. Histórias leves, que remetem ao humor dos quadrinhos em sua era de ouro, sem desrespeitar a inteligência do leitor, com incríveis desenhos de Paolo Rivera e Chris Samnee, que inovam na utilização de onomatopeias e na representação da "visão" do Matt Murdock.
Demolidor é dos grandes personagens da Marvel, que cresceu de uma maneira autêntica, teve a sorte de ser escrito por grandes nomes do ramo e ganhou os holofotes primeiramente pelos seus quadrinhos, alguns merecidamente premiados e lembrados até hoje.